Questão fiscal é problema político e não técnico, diz Samuel Pessôa

A Reforma Tributária irá trazer mudanças significativas na forma de incidência dos tributos sobre o consumo. A expectativa é de um sistema mais simples, com potencial de deixar a vida das empresas menos complexa e propiciar ganhos de produtividade ao país.

Esses efeitos, no entanto, não serão vistos de forma imediata. Há um período de transição de oito anos entre o modelo atual e esse que está em fase de aprovação pelo Congresso Nacional. Além disso, a tributação de determinados bens e produtos será definida por lei complementar no próximo ano.

Mesmo com uma implementação gradual, a Reforma Tributária pode ter um impacto tão relevante na economia brasileira quanto o Plano Real, aprovado em 1994, segundo avaliação de Samuel Pessôa, chefe de pesquisa econômica do Julius Baer.

O otimismo só não é maior porque o Brasil ainda não encontrou um caminho para lidar com a questão fiscal de forma a garantir a estabilização e redução do endividamento público. Confira a entrevista:
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A Reforma Tributária carece da aprovação de leis complementares que ficaram para o próximo ano. Qual o impacto que essa mudança vai trazer para a economia?

Eu acho que a reforma dos impostos indiretos é a reforma estruturante que a gente faz mais importante desde o Plano Real. Ela tem algumas semelhanças com o Plano Real e vai no horizonte de dez, vinte anos aumentar muito o potencial de crescimento da economia. E por que essa reforma tem um impacto tão grande na eficiência econômica? O imposto sobre o valor adicionado (IVA) é um imposto sobre consumo. A (melhor) maneira de você tributar a base de consumo é ao longo do processo produtivo. Esse sistema (em aprovação) é desenhado de uma forma tal que a incidência econômica é no consumidor e o importante é que ele não interfira em como os empresários decidem estabelecer uma produção. Há duas dimensões importantes nisso. A primeira é geográfica. Onde eu vou instalar um negócio não pode ser afetado pela estrutura tributária? Em uma federação, a decisão tem que ser baseada na eficiência econômica.

A Reforma Tributária não vai dar margem para os incentivos regionais adotados pelos governos desde os anos 1990?

Você perde esse instrumento, que é ruim. A segunda neutralidade do imposto sobre consumo diz respeito à forma como o empresário organiza sua estrutura produtiva. Uma empresa como a Volkswagen, por exemplo, pode fazer a pintura dos veículos ou contratar uma empresa especializada para isso. O imposto tem que incidir de uma forma que não afete a decisão da empresa terceirizar ou não esse processo. É preciso que seja uma decisão única e exclusivamente de eficiência produtiva. O imposto pago é insensível à forma como uma empresa organiza sua produção.

Então um efeito da Reforma Tributária vai ser o aumento da produtividade?

A produtividade no Brasil é baixa. Uma hora trabalhada no Brasil rende cinco vezes menos do que a hora trabalhada nos Estados Unidos. Grande parte disso está ligado à baixa qualidade da educação pública, mas a enorme complexidade do sistema tributário também contribui. A gente imagina que a Reforma Tributária vai reduzir a complexidade e os litígios. Vale a pena elaborar as semelhanças com o Plano Real. A primeira semelhança é que na época da inflação, da hiperinflação, as empresas tinham que ter um departamento financeiro só para administrar o caixa delas. E o que faz a complexidade tributária? As empresas têm departamentos tributários imensos. Só de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) são 27 legislações que mudam sempre. Essa complexidade gera muita dúvida. O fiscal da Secretaria de Fazenda estadual entende de um jeito e o contador, de outro. Isso vai bater no Judiciário. O litígio tributário no Brasil é de 70% do PIB. Em qualquer país civilizado, isso é 1%, 2%, 3% do PIB.

A Reforma Tributária, como está até o momento, vai conseguir reduzir essa complexidade? A previsão de regimes especiais não vai reduzir esse efeito?

Acho que não. Tanto as alíquotas favorecidas quanto os regimes especiais permitem um sistema mais simples do que o atual. E o Senado tomou uma medida muito positiva. Foi colocado na legislação uma previsão de que os regimes especiais e as alíquotas favorecidas sejam avaliadas a cada quinquênio. Ou seja, o benefício só vai permanecer se estiver surtindo efeito. Isso vai ajudar a criar uma cultura de avaliação no setor público.

Esse potencial ganho de produtividade pode ajudar a atrair investimentos para as iniciativas ligadas à economia verde?
Com certeza. Uma estrutura tributária mais simplificada reduz muito o custo de fazer negócios no Brasil. E o Brasil tem condições favorecidas de ser uma potência verde. O Brasil tem uma oferta de energia solar e eólica gigantes. A gente pode usar essa energia para produzir combustíveis verdes e exportar.

Há a avaliação que a Reforma Tributária é positiva, mas como o senhor avalia a questão fiscal?

Acho que esse é o maior problema brasileiro. E não é um problema técnico de o ministro errar a conta ou o Executivo querer gastar mais. É um problema político. Nas sociedades modernas, os conflitos distributivos ocorrem na definição do orçamento público. Quem paga a conta? Quais serão as políticas públicas priorizadas? O fato de uma política pública ser importante não quer dizer que haja orçamento. Faz parte da política construir o Orçamento e, por essa razão, a questão fiscal é um problema político e não técnico. O Congresso tem dificuldade para votar maldades (aumento de impostos) e tem dificuldade em cortar gastos. Esse é o maior problema brasileiro, porque temos um déficit (gastos acima das receitas) estrutural. Se não resolvermos isso em tempo hábil, a inflação volta.

Qual tratamento podemos dar a esse problema? Uma nova regra fiscal?

Já temos uma regra fiscal e ela foi bem feita. Precisamos cumprir a regra. O Congresso precisa votar para aumentar impostos ou cortar gastos. Quer derrubar o veto do presidente para o fim da desoneração da folha de pagamentos? Então precisa incluir isso no Orçamento, ver onde podemos cortar R$ 10 bilhões. O Congresso gasta R$ 35 bilhões em emendas, pode cortar R$ 10 bilhões. A gente precisa impor essa lógica sobre o Orçamento.

Mas depois que um setor consegue um benefício, não quer mais abrir mão dele, não é?

É muito difícil e essa é uma característica particularmente forte no Brasil. Não sei o motivo, mas isso nos diferencia até dos países vizinhos. É muito difícil eliminar uma política que gere um benefício para um grupo pequeno, mesmo que para o agregado gere um malefício maior. O custo de tirar é muito alto. Parece que há algo no nosso desenho institucional que torna o nosso sistema político menos???? imune a essa lógica dos grupos de pressão.

Essa questão fiscal pode afetar o crescimento e a inflação no curto prazo?

Nossa avaliação é que no primeiro momento não afeta inflação, mas afeta juros e endividamento. O presidente Lula pegou uma dívida de 73% do PIB e vai entregar ao sucessor, que inclusive pode ser ele, em torno de 85%. O que estou dizendo é que o próximo mandatário vai ter uma dificuldade muito grande, porque o país estará muito endividado.

Há como a Selic cair com essa perspectiva? Isso não vai anular a atração de investimentos que pode vir com a Reforma Tributária?

Na nossa visão, a Selic não consegue cair abaixo de 9,5%. Enquanto a gente não resolver o conflito distributivo e uma forma de financiamento do Estado que garanta estabilização da dívida pública, que permita juros reais de equilíbrio mais baixos, o país não vai engatar um ciclo de crescimento sustentável. Do ponto de vista de crescimento, o governo Lula 3 vai ser mediano. Será melhor do que tivemos em um passado recente, mas longe de atender os anseios da sociedade brasileira.

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