O gás natural é visto no setor de energia como “combustível da transição energética”. Mas o arcabouço jurídico-regulatório do setor possui lacunas que geram desafios e oportunidades para a evolução do chamado “novo mercado de gás”. Essa é a análise de Lucas Antoun Netto, Coordenador de Regulação da Eneva.
Veja a entrevista completa:
Qual o papel do gás natural na transição energética?
O gás natural se coloca como “combustível da transição energética” por ser o combustível fóssil que melhor alia segurança energética, viabilidade econômica e baixo nível de emissões. No Brasil, para além de servir como substituto a combustíveis mais poluentes (como o diesel) para clientes industriais, o gás natural pode ser a opção mais equilibrada – considerando o “trilema energético” – para sustentar o despacho das termelétricas. Como sabemos, nossa matriz elétrica é essencialmente sustentada por geração renovável, e nos momentos de intermitência as termelétricas são acionadas a fim de garantir a segurança de abastecimento no sistema. Esta dinâmica impede prospectar um futuro para o setor elétrico nacional, ao menos no curto prazo, que desconsidere a geração termelétrica; e reforça que a expansão adequada da geração renovável no país é assegurada pela geração termelétrica. Assim, sendo as fontes renováveis e fósseis complementares (e não excludentes) para a segurança do abastecimento nacional, convém debater o combustível fóssil mais adequado para a transição. Pelos motivos citados anteriormente, a meu ver, o gás natural se posiciona como a melhor alternativa.
Qual a tendência de preço do gás natural no Brasil para o segundo semestre de 2024?
Haja vista que os contratos, no geral, são indexados ao Brent, e com base na alta volatilidade dos preços observada nos últimos anos – por conta da pandemia, da geopolítica global, entre outros – me parece complexo apontar, de forma assertiva, uma tendência para o Brasil no segundo semestre de 2024.
Qual a sua avaliação sobre o arcabouço jurídico-regulatório para o setor de gás natural no Brasil?
O arcabouço jurídico-regulatório para o gás natural no Brasil é recente e ainda está em processo de amadurecimento. Quando analisamos a história do segmento de óleo e gás de forma ampla, foram quase seis décadas entre o primeiro registro de hidrocarbonetos no Brasil (1939) e a Lei do Petróleo (1997). Por isso, o setor como conhecemos – com operadores privados e regulado pela ANP – possui somente 26 anos versus quase 60 anos de monopólio da Petrobras. E nesses 26 anos, o foco do ambiente legal, e consequentemente da esfera infralegal, esteve voltado para o petróleo pelo menos até 2009, quando foi aprovada a Lei Federal nº 11.909/2009 (“Lei do Gás”), recentemente revogada pela Lei Federal nº 14.134/2021 (“Nova Lei do Gás”). Não é exagero afirmar, portanto, que o gás natural só começou a ser efetivamente legislado e regulado como mercado no Brasil em 2009, e – apesar da aprovação do novo marco legal em 2021 – o arcabouço jurídico-regulatório do setor ainda tem muitas lacunas, a maior parte delas a nível infralegal. Está previsto para os próximos anos, portanto, um importante trabalho de criação e revisão de atos normativos com vistas a viabilizar o “novo mercado de gás”.
Quais são os principais impactos socioeconômicos da produção de gás natural no Brasil?
Os impactos econômicos são disruptivos, especialmente quando as atividades ocorrem em terra. Existem inúmeros casos envolvendo arrecadação significativa em impostos e participações governamentais, o que altera completamente o panorama dos municípios que abrigam as operações. Nessa discussão, o caso de Santo Antônio dos Lopes (MA), município que visitei inúmeras vezes e tive oportunidade de estudar de perto, merece ser citado. Com cerca de 15 mil habitantes e localizada no Estado mais pobre do Brasil, a cidade viu sua economia se industrializar e crescer mais de vinte vezes desde o início das atividades da Eneva. Além disso, o salário médio mensal na localidade duplicou e dezenas de novas empresas foram abertas na região, havendo indicativos – inclusive – de que a atividade tenha intensificado a demanda por serviços em cidades vizinhas. A experiência positiva de Santo Antônio dos Lopes/MA, portanto, representa um caso de sucesso entre produção de gás natural e desenvolvimento, servindo de exemplo para fomentar a indústria em outras áreas do país.
Qual a importância para o Brasil da exploração do gás de xisto e os impactos causados?
Vejo a importância da exploração do gás não-convencional, como o gás de xisto, pautada em duas frentes principais: a energética e a econômica. A frente energética parte da noção de que a injeção de oferta associada ao sucesso exploratório do gás não-convencional pode tornar o Brasil autossuficiente em gás natural, como se verificou nos Estados Unidos. A frente econômica, por sua vez, carrega a premissa de que o aumento significativo da oferta reduzirá sensivelmente os preços do gás natural ao consumidor final, impactando preços de toda cadeia produtiva que usa a molécula. Sobre os impactos, eles são conhecidos pela indústria (já que a atividade é realizada há anos e em ampla escala em países como Estados Unidos, Canadá e Argentina) e regulados pela ANP desde 2014. Recomendo um artigo do economista Lucas Ribeiro que resume com clareza a situação desta atividade no Brasil.
Menos da metade (40,66%) das atividades planejadas nas cinco edições da Agenda Regulatória da ANP foram concluídas. Quais os desafios para alcançar a meta dos resultados?
Falando especificamente de gás, a aprovação da Nova Lei do Gás foi um marco inicial relevante para a competitividade da indústria, mas a consolidação de seus benefícios para o mercado ainda depende da efetiva regulamentação por parte da ANP. A agência reguladora, inclusive, é citada 92 vezes no novo marco legal, possuindo um papel extremamente desafiador de garantir aos agentes do mercado a previsibilidade das mudanças à medida que elas acontecem. Importa ressaltar os esforços da ANP, que tem se mobilizado – apesar do déficit de pessoal recentemente reconhecido pelo TCU – para regulamentar os temas em aberto. Por isso, é fundamental pensar em formas de fortalecimento da agência reguladora para superar estes desafios.
Como o mercado de carbono pode alavancar a transição energética no Brasil?
Apesar da mobilização para a instituição do mercado de carbono no Brasil, ainda não há legislação terminantemente aprovada para a iniciativa (o substitutivo foi aprovado pela Câmara, mas ainda precisa retornar ao Senado). Ainda assim, espera-se que o mercado de carbono seja capaz de financiar projetos associados à descarbonização, seja ele voluntário (remuneração a partir de compra de créditos), seja ele compulsório (remuneração a partir de recursos de fundo formado pela receita das permissões de emissão, como acontece no EU ETS), alavancando a transição energética no Brasil. Além disso, no caso do mercado compulsório, a expectativa é que agentes posicionados acima do teto de emissões alterem suas práticas operacionais para controlar emissões e, assim, reduzam sua exposição às cotas de emissão ou a penalidades.
Como equilibrar a preocupação com a descarbonização com a manutenção de um negócio economicamente sustentável?
Entendo que tudo passa por previsibilidade e gradualidade. A economia global já convive com marcha forçada em direção à descarbonização, e no Brasil não será diferente. Vejo que o grande desafio do governo será garantir que a descarbonização ocorra sem prejuízo aos negócios existentes e, para isso, ajustar as expectativas dos agentes econômicos envolvidos será fundamental.
Como os setores público e privado podem atuar em conjunto para impulsionar a transição energética brasileira?
A transição energética está acontecendo de forma natural e gradual, como deve ser, e enxergo uma postura muito colaborativa e construtiva entre os setores público e privado para que ela seja justa e inclusiva. Por exemplo, apesar de não ser o maior responsável pelas emissões de GEEs do Brasil (18% do total em 2023), o setor energético nacional já está discutindo variadas formas de descarbonização da matriz (CCUS, hidrogênio, conversão de combustíveis, entre outros), e as políticas públicas de incentivo à inovação (como P, D&I) desempenham um papel importante nesse processo. Por isso, em resumo, entendo que as iniciativas para transição energética já estão avançando naturalmente, e a proximidade de governos e empresas será central para dimensionar adequadamente seus impactos e evitar eventuais distorções socioeconômicas.
Você gostaria de tratar sobre algum outro ponto relacionado à transição energética?
Ao tratar de transição energética no Brasil, acho fundamental pontuar que a causa central do aquecimento global nos países desenvolvidos – que normalmente pautam o debate ambiental no mundo – é diferente daquela notada no Brasil: aqui, o setor de energia não é o maior desafio à descarbonização. Nossa oferta interna de energia é 47% renovável, quando no mundo é 14%. Nossa matriz elétrica é 92% renovável, quando no planeta é 26%. Isso tudo reforça que, no Brasil, um futuro descarbonizado não precisa e não deve ser um futuro sem hidrocarbonetos, especialmente em um contexto em que, enquanto país em desenvolvimento, precisamos de energia abundante e barata.