O setor elétrico brasileiro (SEB) historicamente era visto como um “porto seguro” para os investidores: apresentava perenidade de retornos, estava ancorado num ambiente jurídico-regulatório estável e contava com a atuação competente de uma agência reguladora independente (ANEEL).
Ao longo da última década, contudo, o setor passou a sofrer forte ingerência por parte do Poder Executivo (que culminou na fatídica MP-579, no governo Dilma), bem como do Legislativo (criação de subsídios e inserção de jabutis em projetos de lei). Esse novo “ambiente decisório” para o SEB trouxe grande desequilíbrio entre os diferentes segmentos do setor, e tornou necessária a análise individual de cada um para ampliarmos nossa visão geral. Este é o objetivo deste artigo.
Começando pelo segmento de geração de energia, o Brasil passa por um momento de excesso de capacidade em função do aumento brutal de usinas solar e eólica, movimento turbinado por incentivos e subsídios econômicos criados para essas fontes. Como esse aumento da geração não foi acompanhado por um crescimento equivalente no lado da demanda por energia, os preços de mercado “derreteram”, e o PLD (preço spot) está praticamente no piso desde o final de 2021.
Nesse contexto, os ativos de geração perdem valor, e novos projetos perdem atratividade, principalmente os classificados como fontes “convencionais”, como as grandes hidrelétricas e as termelétricas. Para os ativos “incentivados”, como solar e eólica, apesar dos subsídios tornarem esses ativos mais atraentes, existe uma enorme competição na busca por consumidores livres, o que também pressiona os preços futuros desse tipo de energia para baixo.
Como consequência, poderemos observar associações e movimentos de M&A pouco usuais no setor elétrico, como geradores solares e eólicos se associando a bancos de varejo, seguradoras ou empresas de telefonia, em busca de capilaridade comercial. Trata-se de uma estratégia para atingir o consumidor final num mercado de energia cada vez mais “varejista”.
No segmento de distribuição, as empresas estão enfrentando a chamada “espiral da morte”, em que a migração de consumidores para o mercado livre (de forma subsidiada via energia incentivada) deixa a fatura dos encargos e da energia cara das distribuidoras para quem continua no mercado cativo, implicando uma conta de energia mais alta. Isso, por sua vez, estimula o roubo de energia (o famoso “gato”) e a inadimplência, o que aumenta ainda mais a conta de luz para quem fica no mercado cativo.
Além disso, episódios recentes como o vivenciado pela Enel em São Paulo (quedas recorrentes no fornecimento de energia em função das fortes chuvas) trazem um enorme risco regulatório e de imagem para as empresas do setor.
Com a aproximação do prazo de renovação da concessão das distribuidoras, o governo provavelmente terá que acenar com benesses para que os atuais concessionários se sintam motivados a renovar seus contratos, tendo em vista o maior risco envolvido na gestão desses ativos.
O segmento de transmissão continua pujante, oferecendo praticamente uma “renda fixa” aos investidores. Trata-se de ativos de baixo risco de construção e operação, e que usufruem de receita anual fixa resultante dos leilões organizados pelo governo. Como o país necessita ampliar significativamente sua malha de transmissão, principalmente para escoar as novas energias solar e eólica, este deve ser o setor mais disputado pelos agentes em 2024 e 2025.
No lado da comercialização (trading) de energia, a volatilidade dos preços futuros está finalmente voltando. Apesar de ainda estarmos com o PLD no piso e os reservatórios em níveis confortáveis, a péssima hidrologia que vivenciamos desde o final de 2023, aliada a picos de consumo em decorrência das ondas de calor, tem feito o PLD horário oscilar em dias críticos. Com o período chuvoso se aproximando do fim, os traders já se anteciparam e elevaram a curva futura de preços, prevendo uma alta potencial do PLD principalmente no último trimestre deste ano, e também para 2025, dada a incerteza do próximo período chuvoso.
A liquidez transacional do trading ainda é baixa, mas isso pode mudar com o início das operações da N5X, nova bolsa de energia formada pela joint venture entre EEX (European Energy Exchange) e L4 Venture (fundo independente apoiado pela B3).
E, por fim, temos o fator Itaipú, em que após 50 anos Brasil e Paraguai terão que renegociar os termos do acordo binacional: dependendo de como essa energia for comercializada, afetará distintamente cada um dos segmentos acima analisados (com exceção da transmissão).
Parece que a história do SEB não pode ser retratada num filme, mas sim numa minissérie e com muitas novas temporadas ainda por vir.