Paulo Mayon

Reflexões sobre magia contábil: “Eu sei o que vocês fizeram no verão passado”

O título escolhido se refere ao filme exibido em 1997. A trama é situada em uma pequena cidade costeira, onde quatro adolescentes atropelam e supostamente matam um desconhecido. Com medo das consequências deste acidente, decidem se livrar do corpo e o jogam no mar. A vida de cada um dos quatro toma rumos diversos e um ano depois, eles se reencontram na mesma cidade e uma das jovens recebe um bilhete dizendo: “Eu sei o que vocês fizeram no Verão passado”.  Será que a vida imita a arte, como afirmava Oscar Wilde?

Chegamos em 2024. A falsa sensação de que se trata de um ciclo novo, separado e independente do anterior, traz paz e esperança para a sociedade ocidental. Entretando, para o mercado, não deveria funcionar desse jeito.

Os preços de mercado dos ativos refletem o seu valor econômico ou o seu valor intrínseco, fruto das expectativas de geração de ganhos futuros, num mercado supostamente eficiente. Assim se espera, e assim são tomadas as decisões de investimento.

O ano de 2023, no entanto, foi pródigo em surpresas que variaram entre liminares esdrúxulas, pedidos de recuperação judicial surpreendentes e muita criatividade contábil. Esses eventos se concentraram, porém não se resumiram apenas ao varejo brasileiro.

“Os amigos me congratulam depois de um anúncio de resultados trimestrais e dizem: ‘Bom trabalho. Grande trimestre’, e eu respondo: ‘Obrigado, mas este trimestre foi “cozinhado” três anos atrás. Eu agora estou trabalhando num trimestre que acontecerá em 2021”. (Friends congratulate me after a quartely-earnings announcement and say, ‘Good Job. Great quarter’, and I will say, ‘Thank you but that quarter was baked three years ago’. I am working on a quarter that will happen in 2021 right now)” – Forbes Set 2018 pag. 85.

A frase acima confirma que os resultados apreciados pelos Conselhos e pelo próprio mercado são resultado de esforço e construção iniciados com bastante antecedência. Os Conselhos de Administração acompanham mais de perto esse filme. Já os investidores acompanham apenas as “fotografias” trimestrais e as reuniões que a administração promove para apresentar seus resultados.

Quando assumimos o cargo de conselheiro em uma empresa, enfrentamos o difícil caminho de acompanhar o trabalho feito pela Diretoria e, eventualmente, interferir nesse processo, seja para apoiar e orientar as ações propostas ou até para impedir que sejam executadas. Desde que verificarmos falta de conformidade, ou qualquer outra ação/efeito que coloque em risco os pilares de transparência e boa governança junto a todos os stakeholders, é esse o nosso papel.

No final das contas, o desafio hercúleo do conselheiro é garantir a perenidade da empresa, muitas vezes inclusive confrontando seus administradores e interesses difusos dos diversos acionistas. Em resumo, a empresa deve sobreviver à todas as intempéries e se manter transparente e em compliance com todos seus stakeholders: clientes, sócios, investidores, fornecedores, colaboradores, sociedade, meio-ambiente, governo e regulação.

Por esse motivo, e reconhecendo a complexidade desse trabalho, vale lembrar que o ciclo de resultados que começará a ser publicado agora em 2024 foi engendrado e construído ao longo dos últimos anos. Para os conselheiros que assistiram o filme todo, ou os que embarcaram nessa missão mais recentemente, vale a pena a reflexão: as políticas de risco estão bem descritas e o seu acompanhamento faz parte da agenda de reuniões de Conselho? São fornecidos e apresentados os indicadores que demonstram o enquadramento ou violação dos graus de risco pré-aprovados?

Essa pauta importante envolve crédito, seus índices de atraso no contas a receber; concentrações setoriais ou em grupos de clientes e fornecedores; grau de alavancagem seja bancário ou em cima de fornecedores (contas a pagar); impacto ambiental; vazamento de dados, dentre outros. E, como rotina importante, ferramentas como monitoramento via relatórios para o Conselho, e auditorias internas periódicas (“auto-auditoria”) podem ajudar bastante.

Além disso, a verificação sobre a correta distribuição das atividades que envolvem desde a tomada de risco até o seu controle é fundamental. A separação entre quem de fato gerencia e tem a propriedade de tomar as decisões de risco (primeira linha de defesa dado que possui métodos e procedimentos para mitigação) de quem supervisiona o risco (segunda linha de defesa) e dos que fornecem avaliações independentes (terceira linha de defesa) precisa estar funcionando muito bem.

Enfim, ao final do Verão de 2024, observaremos a nova safra de balanços e demonstrações financeiras. Será um ano de trabalho duro para os Conselhos e, quem sabe, com maior acompanhamento das métricas de risco e algumas lições aprendidas, produzirá menos surpresas nos ciclos vindouros.

 

Paulo Mayon, co-fundador e CIO da RISK3 Technology in Credit Analysis

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